Eu, por exemplo, nem cinco minutos por dia,
pois levanto-me tarde e primeiro há que lavar
os dentes, suportar os incisivos
à face do espelho, pentear a cabeça e depois,
a poeira que caminha, o massacre dos culpados,
assistir de olhos frios à refrega dos centauros.
Chegar por fim a casa para a prosa
de uma carne à jardineira, o estrondo
das notícias, a louça por quebrar. Concluindo,
só por volta das duas da manhã começo a despir
o fato de macaco, a deixar as imagens correr,
simulacro do desastre.
Mas entretanto já é hora de dormir.
Mais um dia de estrume para roseira nenhuma.
José Miguel Silva
Tinha este poema escrito num bloco já antigo, dos tempos em que ainda alimentava a alma com a escrita, com palavras escritas em papeis amarrotados e esperança de um dia fazer algo com essas palavras. Hoje em dia escrevo muito menos do que queria. As palavras não saem tão fluentemente e a alma acabou por habituar-se à realidade do dia-a-dia.
Não quero com isto dizer que envelheci a alma ao ponto de não sonhar, quero simplesmente dizer que a adolescência é uma das fases mais belas da vida, onde a mistura de sensações é tanta que tem que transbordar de alguma maneira...a mim era através da escrita.